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Arturo HartmannEscrevo este post saindo um pouco da linha que adotava para o blog, dando mais destaque às impressões, mais do que qualquer coisa. Mas acho o debate saudável. Um dos termos que usei aqui e alimentou certa polêmica foi "limpeza étnica". O leitor Fábio Cohen e meu colega, e acima de tudo amigo, João Carlos Assumpção, discordaram, com todo o direto, de seu uso. Mas como ainda acredito que ele pode ter sido mal interepretado, colocarei abaixo alguns trechos da introdução que Illan Pappè faz em seu livro "Ethnic Cleansing of Palestine". Meu objetivo é deixar claro que o termo não está baseado em achismos ou em um discurso simplesmente político. É um estudo de História, baseado em uma linha de pesquisa, por mais que se possa discordar dela. Além disso, jogar o termo sem lhe dar seu significado pode dar espaço para imaginar coisas que ele não é.
Como todo estudo de História, ele está sujeito a debate. Não acho que o livro de Pappè deve ser visto como uma biblía, inatacável. Nem que seja perfeito, eu mesmo tenho críticas a ele. Com certeza contém partes que podem ser objetos de críticas, enfim, o desenvolvimento dos estudos históricos têm sua própria escola, suas metodologias, seu espaço de debate. Mas o mérito da obra de Pappè, acredito eu, está exatamente no fato de lançar uma nova luz sobre eventos que sempre tiveram o carimbo oficial da versão israelense, dos heróis da Independência.
Antes dos trechos, um segundo esclarecimento quanto à posição colocada por João sobre o Hamas. Acredito que seja simplificar demais a questão dizer que o Hamas "sequestrou" a população palestina de Gaza. Não quero me estender muito sobre a questão, afinal de fato é complexa, mas o Hamas foi eleito em eleições que, em minha opinião, são completamente sem pé nem cabeça (para a Autoridade Nacional Palestina), pois este é um governo que não governa absolutamente nada, a não ser questões civis dentro das cidades palestinas. O controle da população palestina continua, em primeiro lugar, nas mãos de Israel. Por isso dizemos que a Palestina está ocupada. Mas de qualquer jeito, seu resultado foi legítimo.
Dizendo isso, chegamos a 2006, quando o Hamas, contra todos os prognósticos foi eleito, em eleições aprovadas por observadores internacionais. Um voto de protesto da população palestina devido ao fracasso de Oslo e de Camp David, um recado contra a corrupção do Fatah. A escolha por negociações que não levaram a nada foi punida com a vitória rival. Todas as escolhas feitas pelo Hamas podem ser questionadas, inclusive pode se acusar o movimento de covardes ações terroristas. Mas tachá-lo em primeiro lugar como um movimento terrorista, ainda mais quando ele faz parte de algo maior, a questão palestina, distorce a realidade. O argumento, como é geralmente utilizado, de que o Hamas é terrorista ou de que sequestrou a população palestina, parece eximir Israel de suas ações. Movimentos pró-Palestina, por exemplo, rebatem e acusam o governo de Israel de terrorista e, sob a visão exposta, poderíamos inclusive dizer que o governo israelense sequestrou sua população, que é vítima de massa de manobra de políticos, como colocou João. Apenas para exagerar o argumento, podemos dizer isso sobre o Estado brasileiro.
No quadro de análise geral, e levando em conta as culpas do Hamas, Israel não pode ser isentado de suas ações. Por exemplo, do bloqueio que realiza desde a eleição do Hamas e dos ataques criminosos que levou adiante em 2009. Novamente, esclareço, o termo "criminoso" aqui colocado não foi inventado por mim, mas faz parte de um documento produzido por Richard Goldstone, observador e relator da ONU, que declarou que tanto o Hamas como Israel cometeram crimes de guerra. (http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/12session/A-HRC-12-48.pdf). Trecho: "Estatísticas sobre palestinos que perderam suas vidas durante as operações militares variam. Baseado num campo extenso de pesquisa, o número total de pessoas mortas está entre 1387 e 1417. As autoridades de Gaza reportam 1444 fatalidades. O governo de Israel provê um número de 1166. As informações providas por fontes não governamentais na porcentagem de civis entre aqueles mortos são geralmente consistentes e levantam sérias preocupações sobre o caminho que Israel conduziu em suas operações militares. (...) De acordo com o governo de Israel, durante as operações militares, houveram quatro fatalidades israelenses no sul de Israel, dos quais três civis e um soldado. Eles foram mortos por foguetes e ataques de morteiros por grupos armados palestinos. Em adição, nove soldados israelenses foram mortos durante as lutas dentro da Faixa de Gaza, quatro deles resultado de fogo amigo". Mais uma vez peço que não confiem no meu resumo e leiam o relatório, disponível na íntegra no link que segue. Lá todos os detalhes de crimes feitos por Israel e pelo Hamas. Endosso a indicação de livro de João Carlos, mas dou outra, "Hamas: from resistance to government?", de Paola Caridi. Não acho o micro desimportante, mas o macro nos situa, nos ajuda a não cair em erros, a entender o cenário no qual os indivíduos se movimentam. Fica a dica de leitura de ambos para os que se interessam pela questão.
Agora, alguns trechos, poucos, prometo, do capítulo 1 do livro "Ethnic Cleansing of Palestine", de Illan Pappè. É apenas uma forma de introduzir conceitos mais concretos sobre a obra. São escolhas minhas e a tradução livre é feita por mim, já que o livro ainda não ganhou edição brasileira.
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"Limpeza étnica é hoje um conceito bem-definido. De uma abstração associada quase que exclusivamente aos eventos na ex-Iugoslávia, 'limpeza étnica' veio a ser definido como crimes contra a humanidade, punido por leis internacionais. (p. 1)
(...)
A enciclopédia Hutchinson define limpeza étnica como a expulsão por força com o objetivo de homogeneizar população etnicamente mista de uma região particular ou território. O propósito de expulsão é causar a evacuação do maior número de residentes possíveis, por todos os meios possíveis ao expulsante, incluindo meios não-violentos, como aconteceu com os muçulmanos na Croácia, expulsos depois do Acordo de Dayton em novembro de 1995.
Essa definição é também aceita pelo Departamento de Estado do Estados Unidos. Seus especialistas adicionaram que parte da essência da limpeza étnica é a erradicação, por todos os meios possíveis, da história de uma região. (...) O resultado final de tal ato é a criação de um problema de refugiados. O Departamento de Estado observou em particular o que aconteceu ao redor de maio de 1999 na cidade de Peck no oeste de Kosovo. (p. 2)
(...)
Quando nos voltamos à ONU, achamos o emprego de uma definição similar. A organização discutiu seriamente a questão em 1993. O Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) da ONU liga o desejo de um Estado ou de um Regime de impor um domínio étnico sobre uma área mista - como foi feito na Grande Sérvia - com atos de expulsão e outros meios violentos. O relatório que a Acnur publicou define atos de limpeza étnica incluindo 'separação de homens e mulheres, explosão de casas' e, subsequentemente, a repopulação das casas que permanecem com um outro grupo étnico. Em alguns lugares de Kosovo, o relatório nota, as milícias muçulmanas resistiram, e onde a resistência incomodou, a expulsão levou a massacres.
O plano D de Israel, mencionado no prefácio, contém um repertório de metódos de limpeza que um a um encaixam-se nas formas que a ONU descreve na sua definição de limpeza étnica, e foi a base para os massacres que acompanharam a expulsão massiva. (p. 2)
(...)
No entanto, devo adicionar, que devemos pensar em aplicar - para que a paz tenha chance - uma regra de obsolescência neste caso, mas sob uma condição: que uma solução política normalmente considerada como essencial tanto pelos EUA como pela ONU seja imposta aqui, o retorno incondicional dos refugiados a suas casas. Os EUA apoiaram tal decisão da ONU para a Palestina, a de 11 de dezembro de 1948 (Resolução 194), por um curto tempo (1949). (p. 7)
(...)
Uma segunda, e mais desprezerosa tarefa, foi a reconstrução dos métodos que Israel usou para a execução de seu plano master para a expulsão e destruição, e examinar como e em que extensão estão tipicamente afiliados com atos de limpeza étnica. Como disse antes, se jamais tivéssemos ouvido sobre os eventos na antiga Iugoslávia, mas tivéssemos conhecimento apenas do caso da Palestina, seríamos perdoados por achar que as definições dos Estados Unidos e da ONU foram inspiradas pela nakba, até o seu mais específico detalhe. (p. 9)
(...)
Mas, para além de números, é o grande abismo entre realidade e representação que é o mais incompreensível no caso da Palestina. É realmente difícil de entender, e, para além disso, explicar, porque o crime que foi perpetrado nos tempos modernos e numa junção da história que pedia repórteres estrangeiros e observadores da ONU presentes, fosse completamente ignorado. E, ainda, não há como negar que a limpeza étnica de 1948 foi erradicada quase completamente da memória global coletiva e apagada da consciência mundial. (...) Imagine agora a possibilidade de este fato jamais chegar aos livros de história e que todos os esforços diplomáticos para resolver o conflito que romperam neste país deixem de lado, senão ignorem, este catástrofico evento. (p. 9)