terça-feira, 29 de junho de 2010

Sobre limpeza étnica e Gaza

por Arturo Hartmann

Escrevo este post saindo um pouco da linha que adotava para o blog, dando mais destaque às impressões, mais do que qualquer coisa. Mas acho o debate saudável. Um dos termos que usei aqui e alimentou certa polêmica foi "limpeza étnica". O leitor Fábio Cohen e meu colega, e acima de tudo amigo, João Carlos Assumpção, discordaram, com todo o direto, de seu uso. Mas como ainda acredito que ele pode ter sido mal interepretado, colocarei abaixo alguns trechos da introdução que Illan Pappè faz em seu livro "Ethnic Cleansing of Palestine". Meu objetivo é deixar claro que o termo não está baseado em achismos ou em um discurso simplesmente político. É um estudo de História, baseado em uma linha de pesquisa, por mais que se possa discordar dela. Além disso, jogar o termo sem lhe dar seu significado pode dar espaço para imaginar coisas que ele não é.

Como todo estudo de História, ele está sujeito a debate. Não acho que o livro de Pappè deve ser visto como uma biblía, inatacável. Nem que seja perfeito, eu mesmo tenho críticas a ele. Com certeza contém partes que podem ser objetos de críticas, enfim, o desenvolvimento dos estudos históricos têm sua própria escola, suas metodologias, seu espaço de debate. Mas o mérito da obra de Pappè, acredito eu, está exatamente no fato de lançar uma nova luz sobre eventos que sempre tiveram o carimbo oficial da versão israelense, dos heróis da Independência.

Antes dos trechos, um segundo esclarecimento quanto à posição colocada por João sobre o Hamas. Acredito que seja simplificar demais a questão dizer que o Hamas "sequestrou" a população palestina de Gaza. Não quero me estender muito sobre a questão, afinal de fato é complexa, mas o Hamas foi eleito em eleições que, em minha opinião, são completamente sem pé nem cabeça (para a Autoridade Nacional Palestina), pois este é um governo que não governa absolutamente nada, a não ser questões civis dentro das cidades palestinas. O controle da população palestina continua, em primeiro lugar, nas mãos de Israel. Por isso dizemos que a Palestina está ocupada. Mas de qualquer jeito, seu resultado foi legítimo.

Dizendo isso, chegamos a 2006, quando o Hamas, contra todos os prognósticos foi eleito, em eleições aprovadas por observadores internacionais. Um voto de protesto da população palestina devido ao fracasso de Oslo e de Camp David, um recado contra a corrupção do Fatah. A escolha por negociações que não levaram a nada foi punida com a vitória rival. Todas as escolhas feitas pelo Hamas podem ser questionadas, inclusive pode se acusar o movimento de covardes ações terroristas. Mas tachá-lo em primeiro lugar como um movimento terrorista, ainda mais quando ele faz parte de algo maior, a questão palestina, distorce a realidade. O argumento, como é geralmente utilizado, de que o Hamas é terrorista ou de que sequestrou a população palestina, parece eximir Israel de suas ações. Movimentos pró-Palestina, por exemplo, rebatem e acusam o governo de Israel de terrorista e, sob a visão exposta, poderíamos inclusive dizer que o governo israelense sequestrou sua população, que é vítima de massa de manobra de políticos, como colocou João. Apenas para exagerar o argumento, podemos dizer isso sobre o Estado brasileiro.

No quadro de análise geral, e levando em conta as culpas do Hamas, Israel não pode ser isentado de suas ações. Por exemplo, do bloqueio que realiza desde a eleição do Hamas e dos ataques criminosos que levou adiante em 2009. Novamente, esclareço, o termo "criminoso" aqui colocado não foi inventado por mim, mas faz parte de um documento produzido por Richard Goldstone, observador e relator da ONU, que declarou que tanto o Hamas como Israel cometeram crimes de guerra. (http://www2.ohchr.org/english/bodies/hrcouncil/docs/12session/A-HRC-12-48.pdf). Trecho: "Estatísticas sobre palestinos que perderam suas vidas durante as operações militares variam. Baseado num campo extenso de pesquisa, o número total de pessoas mortas está entre 1387 e 1417. As autoridades de Gaza reportam 1444 fatalidades. O governo de Israel provê um número de 1166. As informações providas por fontes não governamentais na porcentagem de civis entre aqueles mortos são geralmente consistentes e levantam sérias preocupações sobre o caminho que Israel conduziu em suas operações militares. (...) De acordo com o governo de Israel, durante as operações militares, houveram quatro fatalidades israelenses no sul de Israel, dos quais três civis e um soldado. Eles foram mortos por foguetes e ataques de morteiros por grupos armados palestinos. Em adição, nove soldados israelenses foram mortos durante as lutas dentro da Faixa de Gaza, quatro deles resultado de fogo amigo". Mais uma vez peço que não confiem no meu resumo e leiam o relatório, disponível na íntegra no link que segue. Lá todos os detalhes de crimes feitos por Israel e pelo Hamas. Endosso a indicação de livro de João Carlos, mas dou outra, "Hamas: from resistance to government?", de Paola Caridi. Não acho o micro desimportante, mas o macro nos situa, nos ajuda a não cair em erros, a entender o cenário no qual os indivíduos se movimentam. Fica a dica de leitura de ambos para os que se interessam pela questão.

Agora, alguns trechos, poucos, prometo, do capítulo 1 do livro "Ethnic Cleansing of Palestine", de Illan Pappè. É apenas uma forma de introduzir conceitos mais concretos sobre a obra. São escolhas minhas e a tradução livre é feita por mim, já que o livro ainda não ganhou edição brasileira.

:
"Limpeza étnica é hoje um conceito bem-definido. De uma abstração associada quase que exclusivamente aos eventos na ex-Iugoslávia, 'limpeza étnica' veio a ser definido como crimes contra a humanidade, punido por leis internacionais. (p. 1)

(...)
A enciclopédia Hutchinson define limpeza étnica como a expulsão por força com o objetivo de homogeneizar população etnicamente mista de uma região particular ou território. O propósito de expulsão é causar a evacuação do maior número de residentes possíveis, por todos os meios possíveis ao expulsante, incluindo meios não-violentos, como aconteceu com os muçulmanos na Croácia, expulsos depois do Acordo de Dayton em novembro de 1995.

Essa definição é também aceita pelo Departamento de Estado do Estados Unidos. Seus especialistas adicionaram que parte da essência da limpeza étnica é a erradicação, por todos os meios possíveis, da história de uma região. (...) O resultado final de tal ato é a criação de um problema de refugiados. O Departamento de Estado observou em particular o que aconteceu ao redor de maio de 1999 na cidade de Peck no oeste de Kosovo. (p. 2)

(...)
Quando nos voltamos à ONU, achamos o emprego de uma definição similar. A organização discutiu seriamente a questão em 1993. O Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) da ONU liga o desejo de um Estado ou de um Regime de impor um domínio étnico sobre uma área mista - como foi feito na Grande Sérvia - com atos de expulsão e outros meios violentos. O relatório que a Acnur publicou define atos de limpeza étnica incluindo 'separação de homens e mulheres, explosão de casas' e, subsequentemente, a repopulação das casas que permanecem com um outro grupo étnico. Em alguns lugares de Kosovo, o relatório nota, as milícias muçulmanas resistiram, e onde a resistência incomodou, a expulsão levou a massacres.

O plano D de Israel, mencionado no prefácio, contém um repertório de metódos de limpeza que um a um encaixam-se nas formas que a ONU descreve na sua definição de limpeza étnica, e foi a base para os massacres que acompanharam a expulsão massiva. (p. 2)

(...)
No entanto, devo adicionar, que devemos pensar em aplicar - para que a paz tenha chance - uma regra de obsolescência neste caso, mas sob uma condição: que uma solução política normalmente considerada como essencial tanto pelos EUA como pela ONU seja imposta aqui, o retorno incondicional dos refugiados a suas casas. Os EUA apoiaram tal decisão da ONU para a Palestina, a de 11 de dezembro de 1948 (Resolução 194), por um curto tempo (1949). (p. 7)

(...)
Uma segunda, e mais desprezerosa tarefa, foi a reconstrução dos métodos que Israel usou para a execução de seu plano master para a expulsão e destruição, e examinar como e em que extensão estão tipicamente afiliados com atos de limpeza étnica. Como disse antes, se jamais tivéssemos ouvido sobre os eventos na antiga Iugoslávia, mas tivéssemos conhecimento apenas do caso da Palestina, seríamos perdoados por achar que as definições dos Estados Unidos e da ONU foram inspiradas pela nakba, até o seu mais específico detalhe. (p. 9)

(...)
Mas, para além de números, é o grande abismo entre realidade e representação que é o mais incompreensível no caso da Palestina. É realmente difícil de entender, e, para além disso, explicar, porque o crime que foi perpetrado nos tempos modernos e numa junção da história que pedia repórteres estrangeiros e observadores da ONU presentes, fosse completamente ignorado. E, ainda, não há como negar que a limpeza étnica de 1948 foi erradicada quase completamente da memória global coletiva e apagada da consciência mundial. (...) Imagine agora a possibilidade de este fato jamais chegar aos livros de história e que todos os esforços diplomáticos para resolver o conflito que romperam neste país deixem de lado, senão ignorem, este catástrofico evento. (p. 9)

6 comentários:

  1. João Carlos Assumpção29 de junho de 2010 às 04:43

    Com todo respeito, Arturo, você está se baseando num livro que pode ser questionado, sim. Como questiono as atitudes do Hamas, que sequestrou a população de Gaza, deu um golpe em seu próprio povo ao negar todos acordos de paz, pregar o fim de Israel e ainda defender um livro, "Protocolos dos Sábios do Sião", que diz que os judeus têm um complô preparado para dominar o mundo.
    Meu amigo, como bem disse Kierkegaard, "a vida só pode ser entendida olhando-se para trás, mas só pode ser vivida olhando-se para a frente".
    E eu prefiro olhar para a frente. E olhar para a frente é ceder. No dia em que israelenses e palestinos cederem, mas cederem de verdade, olharem uns para os outros como seres humanos, aí sim podemos pensar em algo parecido com a paz. Enquanto isso não acontecer, continuaremos discutindo o que aconteceu em 1919, 1948, quando estamos em 2010 e a realidade é outra. E o futuro, meu caro, também pode ser. É aquele papo de, em vez de ter razão, eu preferir ser feliz ou viver momentos de felicidade, já que a felicidade absoluta é uma coisa que não existe. Abs. Lalo

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  2. Lalo, não vou me alongar no debate, pois acho que ambos colocamos nossas posições. Agora nossas opiniões estão mais claras.

    Só um comentário com relação ao que você fala, "no dia em que israelenses e palestinos cederem, mas cederem de verdade, olharem uns para os outros como seres humanos, aí sim podemos pensar em algo parecido com a paz". Não é nem opinião, é mais uma impressão minha. Viajando pelos Territórios Ocupados da Cisjordânia, e olhando-se para qualquer mapa atual, a divisão consagrada por Oslo - em áreas A, B e C -, os palestinos não têm mais o que ceder.

    Todo o processo que começa em Oslo deu, ao final, um enorme controle a Israel sobre a vida palestina. Enfim, esse "ceder", para mim, não faz muito sentido.

    Grande abraço
    Arturo

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  3. Também não vou me alongar no debate, mas por ter sido citado nominalmente exijo direito de resposta. Simplesmente lamentáveis suas opiniões, que estão mais claras, cada vez mais. O João Carlos, que já disse ter raízes judaicas (filho de ventre materno é judeu, João, acredite em Deus ou não), defende Israel. Você ataca, defendendo o Hamas, que defende a Jihad. Se aquilo não é uma célula terrorista eu não sei o que é terrorismo. Você cita um historiador, somente um, para dizer que Israel fez limpeza étnica. Uma insanidade. Há pelo menos outros seis que atacam o senhor que você citou. Pelo menos seis. Os palestinos têm que ceder também, reconhecendo o direito de Israel de existir. Muitos não reconhecem, você sabia disso? Quero ver minha resposta publicada, mereço o direito a isso por ter sido citado nominalmente por você, e a partir deste momento deixo de acompanhar o blog (mas só depois de ver minha resposta publicada, um direito que me pertence). FC

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  4. João Carlos Assumpção29 de junho de 2010 às 19:54

    Lamento sua posição, Fábio, pois é dialogando que a gente pode chegar a um ponto comum. E diálogo, aparentemente, você não quer ter. Sinto muito que tenha optado por não acompanhar mais o blog, mas seu comentário está aí, colocado como você queria. Para completar, com posições radicais como a sua insisto que fica difícil chegar a um consenso. Acho triste seu posicionamento tão radical. Boa sorte e um abraço, João Carlos

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  5. Bom, vamos lá,

    Em primeiro, citei você, Fábio, porque foi de fato quem levantou essa bola, seguido de meu colega e amigo João Carlos Assumpção. A citação do nome foi apenas para deixar claro porque eu escrevia o referido post. Em segundo, se você ler com atenção ao post, verá que não fiz nenhuma das afirmações que você afirma eu ter feito.

    Número 1 (quanto à limpeza étnica) - tudo que você diz é correto, e eu mesmo coloco a obra de Pappè apenas como um estudo histórico que, sim, acho que deve ser levado em conta. Existem inúmeras evidências que mostram que a linha que Pappè segue não é nenhum absurdo. No entanto, como eu disse, a obra de Pappè é histórica, e não religiosa. Não pode ser tomada como verdade, pode ser rebatida, como sei que foi. Mas se perceber a linha de meu post, quis dizer que a obra de Pappè traz um ambiente saudável de debate. Ele foi o historiador que fez uma obra coesa sobre o debate em relação à "limpeza étnica". Foi isso que quis destacar. Imagine se tivéssemos apenas a versão da História israelense? Imagine se nos agarrássemos, não apenas no caso Israel/Palestina, a versões sem nos entregarmos à reflexão? Acho a obra de Pappè de boa qualidade no geral, mas não quer dizer que seja a verdade. Se me permite, duvido que o autor alimentasse essa fama para seu livro.

    Número 2 - aqui sim você de fato cometeu um pequeno erro de interpretação. Não defendi o Hamas, pelo contrário, tenho severas críticas à linha ideológica que seguem e às ações que perpetraram e perpetram. O que fiz, dentro de um debate produtivo no qual entrei com João, foi dar um quadro maior da questão palestina. Demonizar o Hamas não serve aos propósitos de debate e muito menos de uma resolução para a questão palestina. O meu argumento não atacou Israel propriamente, mas apenas demonstra uma falta de critérios quando se análisa o conjunto da situação, do qual, sim discordo. O Hamas é um ator político da região, do qual eu e você parece concordamos em reprovar - em diferentes medidas. Mas meu objetivo, se não fui claro, foi demonstrar que o Hamas não existiu durante todo o tempo que o conflito Israel/Palestina existe, que ele nasce num ambiente político-social não exatamente estável, e que a posição de culpar ou demonizar o Hamas ao tachá-lo de movimento terrorista não pode eximir Israel de pagar por seus erros e crimes, como Estado da comunidade internacional da qual Israel faz parte. Além disso, existem outros problemas que permeiam o conflito, de raízes mais longinquas mas que ainda permanecem, que não são culpa do Hamas, por mais que eu quisesse que fosse. Mas, acredite, estive longe de defender o Hamas.

    Infelizmente, o espaço é pequeno e não esgotei as possibilidades do que eu poderia explicar acerca do que comentei no post. Dito isso, me aborreço que você desista de acompanhar o blog. Eu não sou a voz do grupo. Pelo contrário. Como notou, João tem opiniões divergentes da minha, mas nem por isso deixamos de nos respeitar. Tenho certeza que se Tiago, Lucas e José aqui escrevessem sobre o mesmo assunto, teriam também opiniões muito diferentes das minhas.

    Além disso, este espaço também é seu como leitor e jamais censuraríamos seus comentários por suas opiniões. Acredito apenas que houve uma má interpretação do que eu disse. Mas se mesmo após ler minha resposta e reler o artigo sentir-se ainda ofendido, tem o direito de não nos acompanhar.

    De mim, fica um grande abraço.
    Arturo Hartmann

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  6. Caro Fabio,
    Exijo que você leia também este texto.
    abs
    http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/as-raizes-do-excepcionalismo-de-israel.html

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